quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Exortação a Sul

Se, indo pela estrada antiga, virem à esquerda uma colina de terra vermelha rodeada por canaviais, não sigam por aí; mas se, ainda assim, tomarem esse rumo, acham, adiante, uma vereda que se alonga por entre figueiras. Voltem para trás, que aquilo é sítio vazio de encanto, onde o calor sufoca e a loucura das cigarras mareia os sentidos e desorienta o forasteiro.
Acaso, porém, vão sempre caminhando, hão-de descobrir uma ribanceira e nela carreiro, meros sulcos, a escorrer no chão de argila. Sentirão o vento morno que traz em seus braços o aroma da esteva e do rosmaninho. E, de repente, é o mar. Acautelem-se, enquanto é tempo – não se brinca com o desconhecido. Quando menos o esperem, eis, à mão direita, umas rochas lavradas de grutas e cornijas, e, para além delas, a arriba da cor do ouro de umas bandas e alvadia de outras. Na terra, à beira do areal, acharão a mata de aloendros, piteiras e uma espécie de chorões; e, se aplicarem bem o ouvido, chegar-lhes-á o murmúrio do ribeirinho que vai espraiar-se num lago e, depois, derrama-se no mar. O mar é verde aqui e de um azul imenso logo além; e o vento acalma, detido pela arriba.
E então, repito: vão-se embora pelo amor de Deus e da Sua Obra – olhem que a areia é movediça e o mar armadilhado de pegos e correntes travessas invencíveis ao homem comum. Mas não me contenho de confidenciar que, pelo areal mal coberto pela água cristalina, meio doce, meio salgada, correm gaivinhas e cardumes de prata com o destemor próprio da aurora do mundo, e passeiam-se aves brancas e pernilongas que não fogem à vista da gente, que lhes pode tocar e sentir o fofo da plumagem.
Mas insisto: não se deixem iludir por tamanha paz, que tudo é trama dos sentidos: nem as aves são o que se cuida, nem a serenidade fora do mundo é mais do que ilusão da mente que o calor engendra. Fujam de tudo isso. (Lembrem que os companheiros de Ulisses deixaram-se embalar e se perderam pelos mesmos enganos). Logo no começo da estrada antiga, ao depararem a colina de terra vermelha rodeada de canaviais, não viram nada – sonharam apenas com uma colina rodeada de canaviais no limite enganador da realidade das coisas.
Parem, que não é por aí. Deixem que a minha terra ao sul acalente a última nesga do Paraíso. Pois que, se ganham o alto e descobrem as esmeraldas para além do pó do caminho, já nada deterá o fim do mundo: um dia, certo como o destino em suas piores cabalas, chegam uns olhos que só vêem cifrões. E então as aves brancas e pernilongas hão-de viver tão-só na minha memória e o ribeirinho morrerá entulhado pela crua engenharia que, dizem, faz o mundo novo.

Pelo amor de Deus, esqueçam que eu sequer falei da colina vermelha rodeada de canaviais, ao pé da estrada antiga.

2 comentários:

  1. Não vou esquecer, por que o faria? Irei em silêncio, normalmente não enxergo cifrões nenhuns, e vejo as aves e os ribeirinhos e tudo o mais que lá vive em paz. E não vou contar a ninguém, mas pode ser que leve a máquina fotográfica.. não se importa?

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  2. Pois minha amiga, será bem-vinda com a sua máquina.De resto sei-a incapaz de matar a Natureza por cifrões.

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