sábado, 29 de janeiro de 2011

Kimbanda

“Tat’etu ki akexile m’ufua, kimbanda kiabokola ku bata dietu”
Acabara Januário de percorrer com a vista a folha amarelecida que dava a estas palavras um vislumbre de eternidade. Quedou-se em silêncio olhando pela janela daquele jeito de mal ver que antes se volta pensativamente para dentro.
Era o dia onze de Janeiro, e o ano 1967.
Na véspera, o céu de chumbo largara uma cortina de pétalas de neve como jamais se vira na cidade, e as crianças esculpiram em delírio bonecos pelas ruas, recreio que se afigurou a Januário a coisa mais despropositada.
Nisto soou o telefone. Que viesse, o pai estava a morrer. A incerteza durava há dias. E acudiram-lhe de novo à mente as palavras: Tat’etu ki akexile m’ufua…Falar Kimbundu perdido numa antigo caderno entre os papéis do que agora se despedia da vida. Significavam, por obscuro acaso: “Quando o meu pai estava a morrer, o curandeiro entrou em nossa casa”. Escritas havia sessenta anos, eram matéria gramatical no estudo de um funcionário público do começo do século vinte, pronto a derreter nas insalubridades da Guiné.
Pela manhã gélida, largou tudo e correu a casa do pai. Acha-o da cor do pergaminho, ligado ao oxigénio, os pulmões, enfim, a desistir. A mãe, meias palavras, os olhos inchados. Num canto retraído, chora a mulher de Januário.
Fora eu o curandeiro! Na meia obscuridade do quarto, ao moribundo o divino dom de recordar oferecer-lhe-ia o calor do Trópico, a sombra do imbondeiro, a tabanca de Bafatá, mais os fulgores da terra algarvia seu berço, tudo em confusa mescla de mil impressões. O desfile de vislumbres resume-se agora em nenhum espaço, esse espaço nenhum em que nós cabemos, maiores as nossas paixões do que o Universo, cada um criando o mundo ao jeito do próprio sentir. Kimbanda kiabokola ku bata dietu.
Num simples movimento da cabeça o médico dá a entender que está por pouco. O curandeiro não seria tão duro. Convocaria os espíritos, entes ocultos acudiriam à qualidade do sangue, ao vigor dos pulmões; e o coração haveria de ganhar um novo recobro.
O vento abana a persiana semicerrada, e Januário toma a mão do pai. Húmida e fria, dir-se-á que atende com um leve aperto. É como se anunciasse: “Rapaz, aqui estou enfim, eu, na fronteira”.
Na Guiné, pelo mês de Maio, chegavam os tornados que traziam um calor pegajoso. E era aquela quebreira, o quinino, as nozes de cola, a ipecacuanha. Januário, ainda bebé, experimentara a colónia deletéria e quase fora ceifado do colo da mãe para o ventre da terra dos espíritos arcanos. O vapor (o “Amboim”?, o “Alferrarede”? o “Cubango”? – que importa?) salvou-o no retorno aos ares temperados em seis dias de navegação.
“E se levantarem um pouco a cabeça…” A mulher de Januário sugere, compadecida.
“É o mesmo…”, fala a Medicina.
O curandeiro diria outra coisa. Onde pára o curandeiro? Nunca para ele seria o mesmo. Há forças ocultas, ora malévolas, ora benfazejas (ele sabe distingui-las) que basta chamá-las pelo nome.
Pronuncia o médico algo que não se entende, não por ser linguagem científica, mas porque a aflição turva o ouvido dos presentes. Talvez só o pai o oiça.
E acode, de tão longe que mal se diria pertencer-lhe, a mão agora exaurida que então, sábia a ensinar coisas, usava sobrevoar no mapa o paralelo dos 12 graus. É aqui. Percorre o arquipélago dos Bijagós, recorda a ilha das Galinhas, as palmeiras Dendé, a mancarra, o macaréu do Gêba, as tremuras do paludismo, os amigos que a perniciosa levara para sempre em tremuras e desfalecimentos, os bailes em que dançava a morna.
E havia mais acima a estrela Altair na ponta do dedo que o pai virava ao céu no acto de ensinar. Altair quer dizer “a que voa”, nome tão apropriado. O menino, então, julgava-a um buraco no céu por detrás do qual tremia a chama duma vela; agora é um sítio por onde o pai em breve voará e com ele o turbilhão de recordações.
Januário sente que ao morrer um homem é com ele um mundo que se perde: ficam uns retalhos na mente dos que consigo partilharam a vida, mas extingue-se o que dava forma à particular versão do mundo.
Contemplativo, o cão geme aos pés da cama. Ele percebe mais, pois alcança o que se não vê, ou ouve, ou cheira, ou na pele ao de leve se capta.
E então a neve pára de cair derretida no ar pelo bafo de Bissau e pelo vento morno que vem dos Bijagós.
Brandamente, desfalecidamente, gorgoleja na tubagem o oxigénio. Passa na rua o amolador puxando da flauta, a convidar os guarda-chuvas. Emite agora um som que nunca se lhe ouvira tão nítido: Tirularulari-Tirularilaru... Estranho é como a vida lá fora ignora o íntimo da gente e tudo lhe resulta igual.
Que sucede nestes últimos momentos que parecem tão indiferentes à vida de quem se despede?
Talvez o pai já nada sinta, pensa Januário.
Mas o mais leve, o que não requer esforço dum organismo que se esvai, persiste e fixa-se nas recordações. A vida é uma etapa, ou então não é nada. Pois que seja etapa numa caminhada que há-de conduzir à última e plena serenidade.
A estrela Altair, na constelação da Águia, fica a 17 anos-luz do quarto morno do desenlace, mas na mente do pai de Januário, o ali e o lá se fundem. Atinge-a o pensamento e regressa com um golpe de asa.
Mas eis que, vou jurar, define-se aos pés da cama o vulto do curandeiro: kimbanda. Enfim! É da raça biafada? É fula? Não importa. É um indivíduo de rosto longo cujas feições mal se distinguem no escuro da pele. Enverga uma camisa de zuarte, cobre-lhe a cabeça uma espécie de barrete frígio. Fala sem produzir palavra.
Parece o pai sorrir: é tarde e resta só um caminho.
E, de um golpe, encerram-se as contas, fecha-se o livro, pára o respirar, e a mão entreabre-se. Januário olha para os que rodeiam a cama, e o curandeiro esvai-se numa neblina. O pai já não está ali.
O amolador repete, pausadamente: Tirularulari-Tirularilaru. Aquele inverno vai-lhe de feição.




11 de Janeiro de 2004