sexta-feira, 3 de setembro de 2010

kansha

Quero dar graças por haver nascido e por, tendo nascido, me
ser dado apurar o ânimo nos rigores da vida;
Quero dar graças por ter nascido onde nasci, pois que,
nascendo onde nasci, pude afeiçoar-me a um trecho de
amorável geografia e aos que lá enraizaram o seu destino;
Quero dar graças pela gentil simetria da flor que me aconteceu
no parapeito da janela, pois se uma semente invisível
gera tal prodígio, é vão o desespero;
Quero dar graças pelo tamanho das minhas dúvidas, pois que,
se fossem menores as dúvidas, eu estaria acaso
mais longe da Verdade e mais perto do orgulho;
Quero dar graças por não ter herdado ou ganho fortuna:
a frugalidade abre horizontes dentro de nós e desperta-nos
para as coisas eternas;
Quero dar graças pelo jeito que não perdi de sonhar, pois o sonho
fecunda a vida de um fertilizante que não morre;
Quero dar graças por aquela doença que, fechando-me em casa
por tempo desmedido, me ofereceu poder ler o que jamais
leria com tão frutuosa pausa;
Quero dar graças por ter visto em meu redor o aparente sucesso
da ambição e do embuste, pois fui-me dando conta de que
vitórias actuais podem significar derrotas adiadas;
Quero dar graças por ter achado nos caminhos da vida gente que
deturpou a minha boa intenção e disso retirou ganho.
Tornou-se-me, assim, mais claro que o verdadeiro Juiz
não é deste mundo;
Quero dar graças por quantos me usaram, e não raros, para atingir
os píncaros – cá em baixo poderei ampará-los na queda;
Quero dar graças pelo desamor radical aos penachos, por cujo brilho
tantos se mordem, pois que sem eles encontro a liberdade;
Quero dar graças porque, tendo o meu antigo clube, embora
moralmente vitorioso, perdido todos os jogos e a sua
Direcção o devido decoro, vivo hoje na maior
serenidade desportiva, não tendo clube nenhum;
Quero dar graças por haver números tão curiosos como
a raiz quadrada de menos dois,
e por aquela estrela azul ao endireito da galáxia M96,
e pelo binómio de Newton, pois
coisas assim embalam a imaginação
Quero dar graças por tudo o que na vida perdi sem remédio.
No vazio aparente que ficou pôde germinar uma nova esperança.



António José (aí pelos anos 80)