terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Conselho aos leitores do romance

Uma coisa de todo desaconselhável é interromper em dado ponto a leitura dum daqueles romances russos do século XIX e retomá-la mais tarde, digamos, um mês depois. Nesta época de variadas e súbitas solicitações, a coisa não será rara: interpõe-se uma outra leitura urgente ou é-se desencaminhado por qualquer afazer inadiável. E, ao voltar ao romance, achamo-nos rodeados de estranhos.
Pois Tolstoi ou Dostoievsky, para lembrar apenas dois superlativos, não nos perdoam as suspensões. As narrativas maiores espraiam-se por uma trama densa feita de inúmeros nós e fios brilhantes que se entrecruzam, sendo eles nutridos por diversos graus de paixão que envolvem uma abundância de personagens, com o predomínio de nobres, magistrados, senhoras muito sensíveis e garbosos militares. Há gente que vive a duas horas de comboio de S. Petersburgo, há também estudantes pobres e sonhadores sem domicílio explícito, agricultores feridos de nostalgia, e há duelos. Omito o pormenor da mulher jovem e da que nem tanto o é, mas igualmente se orna de encantos, que, uma e outra, acordam amores que sobrevêm a delicadíssimas hesitações e dão lugar a relações não raro triangulares, quadrangulares ou de poligonalidade ainda mais facetada. Com basicamente estes ingredientes prodigalizam os grandes romancistas russos páginas de tocante beleza a exigir do leitor apenas isto: a mais persistente das atenções. Com o que estou caído na advertência inicial e que agora retomo.
Interromper a meio umas dessas grandes obras é perder o fio à meada, a menos que se construa um quadro de dupla entrada no qual se identifique a pluralidade dos intervenientes e as respectivas interconexões. Se, porventura, nos descuidarmos, entramos a tropeçar em protagonistas como Vronsky, Svidrigailov, Kólia, Ilya, etc, terreno duplamente escorregadio, desde logo pelos sexos que lhes assentam bem. Pulcheria e Fiedoróvna são atestadamente mulheres, pelo que nos dispensam de retroceder no texto para reavivar um estatuto tão fundamental. E em nomes como Raskolnikov e Chebutykin logo se presume o timbre da masculinidade.
Mas a indefinição neste domínio dos sexos pode ser incómoda. Se, por exemplo, Kóstia, a páginas tantas, partilha o leito com Gricha, o leitor, porventura já esquecido das identidades, fica logo suspeitoso de relação homossexual, o que o remete, penosamente, para a busca duma clarificação em páginas muito anteriores.
Acrescentemos a isto, porém, um desafio ainda maior. É que Mitka enamorara-se de Kátia, irmã de Konstantinovna, a qual, Kátia, fora assediada pelo conde Savka, que assim traiu a condessa Masha, condessa esta que, entretanto, se agradara secretamente de Makaritch, primo de Pulcheria, viúva de Porfiry, morto em duelo com o tenente Ilya, meio-irmão de Gleb, que fora, este Gleb, camarada de armas do referido Mitka, cunhado de Levin, sendo que Levin morre de amores por Irena, a bela enteada de Natasha, a qual Irena é, por seu turno, cunhada de Mitka e secretamente propensa a Ilya, que não a Levin. E assim sucessivamente, na forma de novelo.Ora, nesta constelação duma galáxia romanesca que não raro a ultrapassa em diversidade, há ainda personagens pérfidas, outras íntegras, algumas que padecem de doenças graves, outras que são oficiais do exército do czar ou amanuenses. Por tudo isto, urgiria refazer pacientemente boa porção da caminhada, a fim de entender o peso dos conflitos e restaurar o sentido das nossas predilecções. É, pois, de bom senso não interromper a leitura.