quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Notas ocasionais

1- Quando eu fazia anos, mimavam-me e punham-me no centro do palco da vida.
Eu, menino, gostava de os fazer.
Hoje, cada aniversário empurra-me para a borda do palco. Estou aqui, estou a cair no fosso da orquestra. E então hão-de os anjos tocar suas harpas e flautas, e ninguém dará por nada.


2 - Se se me partem os óculos, e outros não tenho, tolhem-se do céu todas as galáxias e dos livros o rol de filosofias.

3 - A esmagadora maioria vive na esfera das razões mais imediatas ou diminutas: onde ganhar o maior ordenado, obter o telemóvel em conta e achar as melhores pataniscas. E “como não perecer mal”.

4 - Ninguém, e muito menos eu, tem culpa dos meus defeitos.

5 - As nuvens não passam para dar vida às plantas mas para que eu nelas imagine castelos e caras e coisas.

6 - Dava cem canetas de ouro pela caneta de pau dos meus seis anos.

7 - Percorri com um pulmão arrombado o tempo bastante para descobrirem, enfim, a química salvadora. Por que quis assim Deus garantir mais uns anos ao Universo?

8 - Ao achar o céu encoberto, imagino-me gozando o sol do lado de lá.

9 - O senhor João sapateiro tem a felicidade de ninguém o invejar excepto eu. Vive triangularmente entre a sovela, o copo na loja e um sono nocturno sem sobressaltos.

10 - Às vezes julgo ouvir o pregoeiro dos meus tempos de menino. Só que hoje é alucinação e então era uma senhora que perdera o relógio ou umas santolas, esplêndidas, chegadas do mar.

11 - O que custa não é o não ter, mas o achar que faz falta.

12 - Tenho a esporádica alegria de verificar que entre os meus alunos até há estudantes.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Da Natura, da Criação e da Transformação.


No palco do mundo físico, o homem é um mero transformador. Mas transformar não é criar, é recombinar as peças dum puzzle caídas de algures. Se faço um “origami” não crio, transformo. O papel, o tempo e o espaço, desde logo esses, preexistem ao objecto que construo por recombinação. O papel, ele também, é fruto de uma recombinação a partir de ingredientes que preexistem a qualquer esforço humano.
Tudo, a máquina, o vidro, o grafeno, a fibra de carbono, o guarda-chuva, o prédio da esquina, etc, são fruto de recombinações físicas e moleculares de elementos, a montante do processo, que não derivam de qualquer esforço humano. Esses elementos constituem aquilo a que podemos chamar Natureza, acervo imenso de “coisas” que perfazem um conjunto que é gratuito, fixo e heterogéneo. “Gratuito” porque o seu conjunto foi originariamente oferecido à Humanidade; “fixo” porque a Humanidade não tem maneira de alargar o respectivo conjunto; “heterogéneo”, pois comporta elementos tão diversos como a luz solar, a água dos rios e oceanos, o vento, o gelo dos glaciares, o minério no subsolo, a borboleta na Amazónia, a ave que percorre os ares, o tempo, o espaço, etc.
À autoria deste conjunto, a essa sim, deveremos dar o nome de Criação. Tudo, pois, a ela se reporta. Ora o Elemento motor da Criação merece um nome grande e reverenciado—seja Deus, ou outro qualquer que decidamos dar-Lhe. Ele há-de situar-se, logicamente, fora do mundo físico, e à realidade fora do mundo físico dou o nome de “realidade espiritual”, domínio da espiritualidade. Essa realidade espiritual estará “fora” do mundo físico, mas penetrá-lo-á profundamente.
Crer nesse Deus e no facto de Ele, deisticamente, nos conferir alguma relevância (solicitude?) (se lhe fôssemos totalmente indiferentes, qual o propósito de existirmos?) é uma crença que, na impossibilidade de ir mais além, só ela nos baste. Não interessa que traduza irrefutavelmente a verdade (pois que é isso de “irrefutável”?), importa, sim, que disso nos convençamos. A fé é um “salto no escuro”, afinal.
Somos tão minúsculos no enquadramento físico e temporal do Universo que nada poderemos concluir de absolutamente definitivo. Para não tombar no abismo sem fundo, devemos agarrar-nos a uma qualquer protuberância da sua face—e aí deixar que floresça e solidifique a nossa conjectura. Tolhidos pelas quatro forças fundamentais do universo físico, tentar ir mais longe não passa de eterna ginástica do pensamento. A menos que haja o “milagre” da Revelação definitiva. Como se afere?

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Circunvagando (1ª Etapa)

Circunvagando (1ª etapa)


Entre 7 e 20 de Fevº de 2011 andei resignadamente pelas veredas que separam a saúde de algo que merece um nome impreciso e leva-nos sabe-se lá onde. Experimentei um regime de antipiréticos, agasalho, inalações, méis e chás anti-tússicos; acompanhou tudo isto um médico que pretendeu evitar a pneumonia a um doente resignado e à mercê. Ora este último, no momento em que vê a febre recuar por força dum antibiótico, nota aquela dor num dedo do pé, que trepa ao tornozelo. Pé e tornozelo incham disfarçando-se de uma cor-de-rosa que não engana.
A coisa, dor, cor e inchaço dá pelo nome mesquinho de gota. A gota caracterizava os nobres ingleses e abrange não só vítimas inocentes como ainda os descuidados na ingestão de quase tudo o que dá especial deleite ao paladar. Considero-me entre os inocentes.


Quando o médico da fita recomenda a um Oliver Hardy tolhido por um pé de elefante que evite o “high living”, o companheiro Stan Laurel logo propõe que os dois se transfiram para a cave. Piadas assim aliviam-nos. O mais do enredo não vem para aqui chamado, mas o curioso é que, se o meu corpo convalescente não seguiu o alvitre de Laurel, o meu espírito subiu a outros andares: o das estrelas.

Pois achei mesmo na mornidão do quarto, entregue às minhas lucubrações, dois tipos de estrelas, um que me repugna, outro que me embalou a imaginação. No primeiro tipo depararam-se-me aqueles astros anões que se nutrem da influência política da estrela a cuja órbita se acolhem, e à sua sombra gozam benesses vitalícias e grossas impunidades. Pequenos asteróides de poeira e gelo, atracam a um partido, sugam o que podem, e julgam-se senhores de toda a constelação a que os prende a força gravitacional do interesse próprio. Aparentemente grandes, são realmente minúsculos.
Mas (oh! ai! ena! - sei lá!), mais importante, achei por acaso uma luzinha dos céus que, ao fim de tantos anos de eu a julgar uma estrela minúscula, se revelou uma galáxia de tremendo porte. À vista desarmada, fica ali à beira da Ursa Maior, ao ladinho da pega da concha onde se situam as estrelas Alkaid e Mizar, que são as primeiras. A gente esboça para cima um triângulo rectângulo isósceles que tem por hipotenusa o segmento que as une. Sensivelmente no vértice do ângulo recto, divisa-se o dito brilhozinho que mal se revela à vista desarmada.
Qualquer engripado encerraria por aqui a sua chateza.
Mas ao brilhozinho chamam-lhe os astrónomos M101. E agora o pasmo: trata-se da “galáxia Pinwheel”, monstro celeste muito maior do que a nossa Via Láctea. “Pinwheel” quer dizer “ventoinha”, como aquelas, de papel, que na minha infância eu punha a rodar ao vento espetadas num alfinete. Situa-se esta a 25 milhões de anos-luz da Terra. As sete estrelas principais da Ursa Maior distam do meu quarto uns “breves” 60 a 120 anos-luz. O “nosso” Sol, que nos ilumina os dias, prossegue esbaforido à bagatela de nove minutos.
Há, pois, coisas ínfimas que a nossa vista imperfeita considera enormes, a par de outras que tomamos por valiosas e não passam de flatulências.
Existirá um critério de medida universal? Como não há, julgamo-nos relevantes. Quem apenas vê o mundo pela epiderme vai medrando às escuras. Mas se alcança mais curiosas profundidades, retira inesperada linfa de desertos reais ou aparentes.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Kimbanda

“Tat’etu ki akexile m’ufua, kimbanda kiabokola ku bata dietu”
Acabara Januário de percorrer com a vista a folha amarelecida que dava a estas palavras um vislumbre de eternidade. Quedou-se em silêncio olhando pela janela daquele jeito de mal ver que antes se volta pensativamente para dentro.
Era o dia onze de Janeiro, e o ano 1967.
Na véspera, o céu de chumbo largara uma cortina de pétalas de neve como jamais se vira na cidade, e as crianças esculpiram em delírio bonecos pelas ruas, recreio que se afigurou a Januário a coisa mais despropositada.
Nisto soou o telefone. Que viesse, o pai estava a morrer. A incerteza durava há dias. E acudiram-lhe de novo à mente as palavras: Tat’etu ki akexile m’ufua…Falar Kimbundu perdido numa antigo caderno entre os papéis do que agora se despedia da vida. Significavam, por obscuro acaso: “Quando o meu pai estava a morrer, o curandeiro entrou em nossa casa”. Escritas havia sessenta anos, eram matéria gramatical no estudo de um funcionário público do começo do século vinte, pronto a derreter nas insalubridades da Guiné.
Pela manhã gélida, largou tudo e correu a casa do pai. Acha-o da cor do pergaminho, ligado ao oxigénio, os pulmões, enfim, a desistir. A mãe, meias palavras, os olhos inchados. Num canto retraído, chora a mulher de Januário.
Fora eu o curandeiro! Na meia obscuridade do quarto, ao moribundo o divino dom de recordar oferecer-lhe-ia o calor do Trópico, a sombra do imbondeiro, a tabanca de Bafatá, mais os fulgores da terra algarvia seu berço, tudo em confusa mescla de mil impressões. O desfile de vislumbres resume-se agora em nenhum espaço, esse espaço nenhum em que nós cabemos, maiores as nossas paixões do que o Universo, cada um criando o mundo ao jeito do próprio sentir. Kimbanda kiabokola ku bata dietu.
Num simples movimento da cabeça o médico dá a entender que está por pouco. O curandeiro não seria tão duro. Convocaria os espíritos, entes ocultos acudiriam à qualidade do sangue, ao vigor dos pulmões; e o coração haveria de ganhar um novo recobro.
O vento abana a persiana semicerrada, e Januário toma a mão do pai. Húmida e fria, dir-se-á que atende com um leve aperto. É como se anunciasse: “Rapaz, aqui estou enfim, eu, na fronteira”.
Na Guiné, pelo mês de Maio, chegavam os tornados que traziam um calor pegajoso. E era aquela quebreira, o quinino, as nozes de cola, a ipecacuanha. Januário, ainda bebé, experimentara a colónia deletéria e quase fora ceifado do colo da mãe para o ventre da terra dos espíritos arcanos. O vapor (o “Amboim”?, o “Alferrarede”? o “Cubango”? – que importa?) salvou-o no retorno aos ares temperados em seis dias de navegação.
“E se levantarem um pouco a cabeça…” A mulher de Januário sugere, compadecida.
“É o mesmo…”, fala a Medicina.
O curandeiro diria outra coisa. Onde pára o curandeiro? Nunca para ele seria o mesmo. Há forças ocultas, ora malévolas, ora benfazejas (ele sabe distingui-las) que basta chamá-las pelo nome.
Pronuncia o médico algo que não se entende, não por ser linguagem científica, mas porque a aflição turva o ouvido dos presentes. Talvez só o pai o oiça.
E acode, de tão longe que mal se diria pertencer-lhe, a mão agora exaurida que então, sábia a ensinar coisas, usava sobrevoar no mapa o paralelo dos 12 graus. É aqui. Percorre o arquipélago dos Bijagós, recorda a ilha das Galinhas, as palmeiras Dendé, a mancarra, o macaréu do Gêba, as tremuras do paludismo, os amigos que a perniciosa levara para sempre em tremuras e desfalecimentos, os bailes em que dançava a morna.
E havia mais acima a estrela Altair na ponta do dedo que o pai virava ao céu no acto de ensinar. Altair quer dizer “a que voa”, nome tão apropriado. O menino, então, julgava-a um buraco no céu por detrás do qual tremia a chama duma vela; agora é um sítio por onde o pai em breve voará e com ele o turbilhão de recordações.
Januário sente que ao morrer um homem é com ele um mundo que se perde: ficam uns retalhos na mente dos que consigo partilharam a vida, mas extingue-se o que dava forma à particular versão do mundo.
Contemplativo, o cão geme aos pés da cama. Ele percebe mais, pois alcança o que se não vê, ou ouve, ou cheira, ou na pele ao de leve se capta.
E então a neve pára de cair derretida no ar pelo bafo de Bissau e pelo vento morno que vem dos Bijagós.
Brandamente, desfalecidamente, gorgoleja na tubagem o oxigénio. Passa na rua o amolador puxando da flauta, a convidar os guarda-chuvas. Emite agora um som que nunca se lhe ouvira tão nítido: Tirularulari-Tirularilaru... Estranho é como a vida lá fora ignora o íntimo da gente e tudo lhe resulta igual.
Que sucede nestes últimos momentos que parecem tão indiferentes à vida de quem se despede?
Talvez o pai já nada sinta, pensa Januário.
Mas o mais leve, o que não requer esforço dum organismo que se esvai, persiste e fixa-se nas recordações. A vida é uma etapa, ou então não é nada. Pois que seja etapa numa caminhada que há-de conduzir à última e plena serenidade.
A estrela Altair, na constelação da Águia, fica a 17 anos-luz do quarto morno do desenlace, mas na mente do pai de Januário, o ali e o lá se fundem. Atinge-a o pensamento e regressa com um golpe de asa.
Mas eis que, vou jurar, define-se aos pés da cama o vulto do curandeiro: kimbanda. Enfim! É da raça biafada? É fula? Não importa. É um indivíduo de rosto longo cujas feições mal se distinguem no escuro da pele. Enverga uma camisa de zuarte, cobre-lhe a cabeça uma espécie de barrete frígio. Fala sem produzir palavra.
Parece o pai sorrir: é tarde e resta só um caminho.
E, de um golpe, encerram-se as contas, fecha-se o livro, pára o respirar, e a mão entreabre-se. Januário olha para os que rodeiam a cama, e o curandeiro esvai-se numa neblina. O pai já não está ali.
O amolador repete, pausadamente: Tirularulari-Tirularilaru. Aquele inverno vai-lhe de feição.




11 de Janeiro de 2004