domingo, 22 de novembro de 2009

Beatriz de Orange

Porto, 2001. Treze de Janeiro. Destas jubilosas celebrações colectivas há sempre uma imagem pública a par de inúmeros testemunhos privados, de que passo a dar um que me respeita.
Estando eu precisado de ir à Baixa, mais precisamente a FNAC, e porque caminhar é saudável, prevaleci-me da amenidade do tempo e do declive da minha rua, e abalei por aí abaixo até ao Largo do Padrão, onde vim a encontrar uns polícias por lá distribuídos em pose gesticulante. O que me fez suspeitar de grossa ocorrência. Logo surge um BMW, depois outro e outro (meu Deus, há tanto BMW! ), todos embalando garbosas écharpes e solenes cavalheiros trajando sobre o escuro; e, contudo, não mostravam tais ocupantes o ar de ser matéria de funeral; e, pelo sentido que levavam, caí em mim da minha distracção: iam para o Coliseu. Era a cerimónia oficial, pois claro!
Avancei confiadamente para a Rua de Passos Manuel. Nos Poveiros foi-me barrada a passagem à míngua dum papel que um ou outro indivíduo tinha artes de sacar da carteira. E eu que, na modesta demanda da FNAC, só buscava o caminho mais curto!
Ora acotovelava-se farto ajuntamento de populares interessados no espectáculo ou tolhidos como eu no seu percurso, os quais notei com surpresa que, na sua maioria, estavam ali na expectativa de, nem mais nem menos, “ver passar a Rainha”. Sim, a Rainha. Vislumbrei em suas viaturas Sasportes, Gama, Teresa Lago, Nuno Cardoso – sei lá quem mais! O povo mostrava-se relativamente alheado destas personalidades. Mas a Rainha? Quando é que passa a Rainha? Para uns, chegaria por Santo Ildefonso; a Rua da Alegria a haveria de desencantar, julgavam outros. “Ó senhor guarda, por onde é que vem a Rainha?” Os guardas tendem a ser agora mais educados, mas não sabem por onde chegam as rainhas, e muito menos por onde chegaria a Rainha Beatriz da Holanda. Embora noventa e oito por cento da população ali aglomerada não soubesse localizar no mapa a tal Holanda, era geralmente aceite que uma rainha de qualquer parte não é coisa que se veja todos os dias, ao vivo e de graça.
Por mera inércia, fiquei na esquina, apertado, a pensar em como desde a infância nos impregnam o imaginário reis, rainhas, princesas, fadas. Às vezes também dragões e sapos, que eles igualmente frequentam as histórias que nos embalaram. Mas estes são bichos menores e há uma força em nós que os repudia.
Reis e rainhas, sim. Eles aí estão a inflamar o povo deste país constitucional e forçosamente republicano, o que é admirável. Não é a Holanda e a sua cultura que justifica este frenesim. Nem Erasmo, nem Van Gogh, nem Huygens, nem Vermeer van Delft. Nem Johan Cruyff do Ajax – bem, não exageremos: por este último talvez se salve a cultura dos Países Baixos.
Deixei-me ficar por ali, não digo que interessado, mas bloqueado. E bloqueado me achava quando, de repente, se elevou uma onde de exclamações ao longo de Santo Ildefonso. Deslizam motociclistas saídos do país das fadas na dianteira dum carro preto; e vejo, ou entrevejo, pelos vidros, o que me deu ares da Rainha Beatriz da Casa de Orange. Sim, afunilando eu a vista pelos vidros sombreados: era ela mesmíssima – tão pouco a face mudara no seu geral! – a neta de Guilhermina, filha de Juliana e de Bernardo von Lippe-Biesterfeld, casada com Claus von Amsberg e mãe de um primogénito rapaz, originalidade na sucessão da coroa holandesa.
E eu, que estou sabendo isto tudo, ali espremido contra a parede, não sou autorizado a chegar à FNAC! Sinto-me então a rememorar, recuando ao ano de 1961. Foi em Toulouse, terra das violetas do Languedoc, rondava eu os anos terminais da Faculdade, quando a “Fondation Européenne de la Culture” me acolheu. Tinha Beatriz vinte e três anos, houve um baile – no palácio do Capitole?, na “Mairie”?, não estou bem certo. Mas lembro-me de que, apesar do meu desjeito em matéria bailante, encorajado por outros dancei com a princesa sob o olhar do pai Bernardo, Presidente da Fundação. Beatriz vinha de ter a graça de uma curta palestra sobre a sua geração e as respectivas responsabilidades. Estou em crer que a felicitei pela dita alocução e que terei mesmo derivado para a chuva que fazia. Que se há-de dizer assim do pé para a mão a uma princesa da casa de Orange ou de outra casa qualquer?
Pensei em tudo isto, sumido na esquina dos Poveiros, mas é óbvio que tão pretérita credencial não substituía o papelinho que o guarda reclamava para me aproximar do glorioso Coliseu da minha mocidade…a caminho da FNAC. Nem substituía o papelinho, nem me garantia um dos regulamentares.
Amparou-me o conforto íntimo de que, no meio de tanta gente, fora eu o único que transportara nos braços, se bem que desgraciosamente, a princesa Beatriz de Orange. Enquanto seu pai Bernardo, o rosto longo e severo, fixava em mim os óculos de delgada armação.
E não sei que impulso me levou a meter o ombro resignado na massa compacta desta boa gente do Porto, regressando a casa.

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