quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Totó, grazie tante!

Nasci praticamente no cinema, naquela fase em que a sétima arte oscilava entre o mudo e o sonoro. Filho e neto dos donos dum cinema, ele permitiu-me uma infância no convívio surpreso de peripécias achatadas num ecrã. Desfrutei, portanto, desde os meus alvores gente ora de irradiante beleza, ora feia como a negra noite ao tiro e à facada. Isto fica-nos no sangue e povoa-nos os sonhos pela vida fora. A Greta Garbo, o Douglas Fairbanks, o Charlie Chaplin, o Tarzan rodeado de macacos, eram-me todos reais, tão reais para mim como os parentes sisudos e os colegas da escolinha.
Há dias peregrinei naquele território patológico que decorre entre a constipação que explode e a gripe indecisa. Foi um ensejo magnífico para sacar duns dêvêdês e cassetes VHS e mergulhar em fitas que já não via há muito. Diga-se de passagem que tenho uma colecção de filmes em que cabe um bom número de Óscares, prémios e Globos da Academia, mas mal me cabe nas estantes. Ora decidi-me por alguns dos mais antigos, em glorioso preto e branco. Separei três da “era de ouro” do cinema português e dois do cinema italiano da década de quarenta. “A canção de Lisboa”, “O Costa do Castelo”, “O Leão da Estrela”, outros tantos exemplos do extraordinário talento do António Silva. Depois, “Totó fidalgo” e “Totó procura casa”, comédias italianas de um delicioso burlesco. Estes dois últimos guardei-os, com outros, em fita gravada a partir de uma série de programas nos primórdios da TVi. Apresentou-os Lauro António, a enaltecer justamente o enorme talento do Totó, o qual tem sofrido um juízo algo depreciativo de alguns círculos cinematográficos bem-pensantes. Situo-me na vasta legião dos que o admiram sem restrições.
António Silva e Totó representam dois “desenrascados” de alto calibre, o primeiro pernóstico, o segundo burlesco.
Mas, enquanto António Silva se chamou simplesmente António Maria da Silva, Totó ostentou um nome deveras estrambótico e bem condizente com o que ele foi na vida. Ei-lo, a desafiar o fôlego: Antonio Griffo Focas Flávio Ângelo Ducas Commeno Porfirogenito Gagliardino de Curtis di Bizanzio. Todo este chorrilho se justifica por documentos idóneos, mas não cabe aqui fazê-lo.
Um nascido em Lisboa, o outro em Nápoles; duas figuras quase por inteiro contemporâneas. O primeiro ganhou a minha admiração, mas foi Totó que me enleou num fascínio que teve o dom de render os meus catorze anos à própria delícia da língua italiana, musicalização ideal da comicidade do actor e da Opera buffa. E de tal modo se embutiu em mim o perfumado idioma que, lamento ter de dizê-lo, qualquer fala naquela sonoridade mais me desopila o fígado do que me conduz ao sério, seja qual for a gravidade do momento.
Lembro Totó a cada passo, no despoletar das melhores gargalhadas da minha mais imatura adolescência e no exemplo de um actor que viveu na tela e na vida um percurso extraordinário. Há muito lhe devia este tributo. Grazie tante! Meglio tardi che mai.

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