domingo, 31 de janeiro de 2010

Livros, fiéis amigos

Estou sentado numa sala forrada de livros. Não lhe chamo biblioteca, termo que me parece pretensioso. Há quem não o considere. É meia-noite. Deixo o computador com o monitor no escuro, a ferver, enquanto aguarda reanimação. E desligo o televisor, que se entope de futebol.
Assim, no silêncio, as espaldas de três mil volumes fitam-me como se a minha lenta transformação, obra dos anos, lhes causasse espécie. Este primeiro exército ocupa a fila da frente; atrás acotovelam-se uns dois mil companheiros algo despeitados por lhes ser roubada a vista, de modo que se lhes mexo são inclinados a vingar-se devolvendo algum pó.
A um livro, o primeiro que comprei, “O Feiticeiro de Oz”, dei o privilégio de repousar em decúbito dorsal sobre umas literaturas inglesas, a Estilística de Rodrigues Lapa e dois estudos de Moisés Massaud. Aquele distinto feiticeiro tem uma capa que me encheu o olho quando eu tinha dez anos, idade de súbitos fascínios. Dorothy, the yellow brick road…fora o incitamento do filme. E larguei vinte escudos das Páscoas na extinta Livraria Internacional, ainda eu ia de calções.
Os livros são pacientes com a volubilidade das minhas leituras. Ao acicatar-me uma nova curiosidade, empurro para a segunda fila alguns volumes a dar espaço aos recém-chegados. Se engrossa uma predilecção já instalada, espremo os novos inquilinos na fila da frente e eles parecem gozar com o aperto.
O interessante é que percorrer as estantes equivale a palmilhar a minha vida à maneira do arqueólogo que vasculha novos estratos a refazer o passado. Um filme, um concerto, uma conferência ou viagem, a notícia duma descoberta, até um eclipse ou uma pontada nas costas. E alarga-se-me o desejo de aprofundar porquês, e lá vai mais um livro. “Já os leste todos?”é a pergunta sacramental de quem no fundo escarnece da originalidade e em regra lê pouco ou nada. Não há resposta.
Quando na década de sessenta recebi os prémios dos Jogos Florais das Queimas das Fitas de Coimbra e do Porto – Bons tempos! E eram monetários! – comprei por cada um como recordação um volume no qual meti a carta congratulatória duma Associação Académica. Eram edições da Arcádia as que eu escolhia, sempre biografias: Camões, Torga, Eça, Aquilino, Agustina, Pessoa. Olham-me hoje todos com mal disfarçado despeito por não os ter voltado a desfolhar desde então. Perfilam-se na estante mesmo ao lado da obra completa (julgo) de Somerset Maugham (“Of Human Bondage”, “Cakes and Ale”, “The Painted Veil”, etc., etc…, por dezenas. Uns metros ao lado, jazem gramáticas de sueco e uns livrinhos de histórias nesta mesma língua improvável, restos duma antiga curiosidade: "Rodluvan och andra klassiska barnkammarsagor", "Rosengull "…..
De uma banda espraiam-se, enormes, a Ficção, a Poesia e o Teatro, noutra acolhem-se a Filosofia e obras de devoção. E há extensos nacos de Economia , História, Música, Linguística. Se eu fosse dizer que matérias de Ciência, mormente a Matemática, por aqui marcam as suas pegadas arriscava-me a passar por lunático. Por isso não digo.
Os géneros misturam-se a cada passo violando a devida destrinça, mas sem menosprezo; desarrumam-se de modo aparentemente aleatório, porém bem me localizo mercê do longo convívio. E não os disponho pela cor das lombadas ou segundo a primazia dos títulos que estão na moda, como faz quem os não lê, mas os ostenta como bibelôs. A limitação do espaço e a chegada de novos ocupantes desculpam-me de tudo.
A colecção dos livros duma vida forma um todo que, ao desfazer-se um dia ao irmos desta para melhor, assemelha um corpo retalhado pelos abutres.
E é assim que, neste momento, apetece-me improvisar à maneira de quem escrevesse um haiku japonês:

Um a um fitam-me os livros
por mil lombadas.
Meus fiéis companheiros!

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